Filme: Cat People. Mulher: Irena Gallier / Nastassja Kinski
(IMDb)
- A sensualidade felina na mulher -
Quando li o convite da Sofia fiquei a reflectir sobre os vários papeis assumidos pela Mulher, não só no cinema, mas na História, na vida. Foquei-me num dos que mais interesse e fascínio me suscita: a Mulher enquanto símbolo de beleza e sensualidade. Estamos a falar de algo que vem desde os primórdios dos tempos, não são, afinal de contas, os deuses do amor e da beleza associados ao género feminino? Afrodite para os Gregos, Vénus para os Romanos ou Freyja para os nórdicos? No entanto, este é um tema amplamente explorado e que certamente será referenciado neste desafio mais do que uma vez, por isso quis ser mais selectivo na forma como o abordaria e assim sendo juntei-o a outro, ao da ligação entre o Homem e o Animal.
A relação entre Homem e Animal é um conceito que sempre nos intrigou. Essa aproximação do ser Humano ao seu lado selvagem ou, no sentido inverso, a racionalização dos animais, são temas que desde cedo fizeram parte da nossa cultura. Voltando aos deuses, no antigo Egipto estes eram retratados por terem corpo de Homem e cabeça de animal. Posteriormente, quem não se lembra de criaturas fantásticas como os centauros ou o minotauro provenientes da mitologia grega? Nos dias de hoje, algumas destas criaturas ainda mantêm uma presença muito forte, como é o caso dos Vampiros (ainda que o mito não tenha nascido a partir do mamífero voador) e dos Lobisomens. No caso da humanização dos animais o “Triunfo dos Porcos” ou “O Planeta dos Macacos” são duas obras que certamente todos conhecerão também.
Nastassja Kinski |
Em relação à exploração do lado animal no Homem há qualquer coisa de libertador nessa relação. Esta mistura entre Homem e Besta resulta normalmente numa maior aproximação ao nosso lado selvagem, “animal”, que por conseguinte nos afasta das nossas “amarras” morais e sociais, ou seja, da nossa racionalização. No caso dos clássicos Vampiros ou Lobisomens, existe por norma um qualquer tipo de maldição que em certa medida desculpa os seus actos, gerando ao Homem em questão um conflito interior entre os seus dois lados. Por vezes esta ligação pode ter uma forte simbologia sexual, no caso dos vampiros é algo que, pelo menos desde o livro do Bram Stoker, é focado. Se bem que no caso de “Dracula” havia toda uma sexualidade reprimida que se libertava no acto da alimentação, quando o vampiro bebia o sangue da sua vítima, quando esta se entregava ao seu predador. Hoje em dia se virmos séries como “True Blood” vemos que a sexualidade assumiu contornos mais explícitos e directos.
Nastassja Kinski em “Cat People” (1982) |
Tudo isto me conduziu a “Cat People” de Paul Schrader, o remake de 1982. Na personagem de Nastassja Kinski (Irena) temos a utilização da mulher como símbolo de sensualidade e, também, a sua ligação ao seu lado animal, neste caso, um felino, uma pantera negra. Irena vem de um povo que sofre de uma terrível condição, sempre que se entregam aos seus prazeres carnais transformam-se em leopardos e a única forma de regressarem à forma humana é matando. Irena começa por ser retratada como a jovem pura e virgem, mas que com o tempo começa cada vez mais a lutar contra os seus impulsos sexuais, cuja intensidade aumentam à medida que se aproxima de Oliver (John Heard). A cedência a esses impulsos corresponde à cedência ao nosso lado animal, que aqui é levado ao sentido literal. Quando Irena tiver relações sexuais a pantera que há dentro de si será, finalmente, libertada e com isso as consequências, que se preveem sangrentas e letais. O tema principal do filme ficou a cargo de David Bowie e consegue reunir o tom sensual e negro do filme de Schrader. Uma das maiores canções do autor que ainda hoje é recordada com entusiasmo.
Simone Simon
em “Cat People” (1942)
|
Mas, voltando ao filme, porquê a escolha de um leopardo? De facto os felinos são dos animais mais elegantes a pisar a Terra e o facto de Irena se transformar numa criatura perigosa, aumenta a carga erótica, novamente, veja-se o caso dos vampiros e dos lobisomens. No filme original de 1942 - com o mesmo título - a escolha do leopardo parece ser oriunda da Bíblia, por este ser um animal associado ao demónio, o que não tem de estar afastado de conceitos de sensualidade, uma vez que o diabo é de certa forma o primeiro sedutor. Contudo, ainda que a simbologia sexual esteja presente, a carga erótica é muito menor no filme de Jacques Tourneur, pois este não se debruça tanto sobre os apetites sexuais como o remake. Na versão original Irena está também amaldiçoada, condenada a nunca se poder entregar ao homem que ama, mas apenas cede ao seu lado animal quando se entrega ao ciúme. Um filme de baixo orçamento que prima pela sua realização, principalmente nos momentos de suspense, muito bem conseguidos com a utilização do som e de jogos de sombras.
Batman e Catwoman |
Podia concluir o meu texto agora. Escolhi a personagem interpretada por Nastassja Kinski, para focar a mulher enquanto símbolo de sensualidade e perigo, bem como a sua relação ao seu lado animal. Porém, gostaria de aprofundar ainda mais o tema e tentar justificar que a escolha de felinos para associar a mulheres cuja sensualidade é forte, não se trata de um acaso. É verdade que no filme em questão tanto Irena como seu irmão Paul (Malcom Mcdowell) são leopardos, contudo é em Irena que se concentra a maior carga de sensualidade. Atente-se agora na Banda Desenhada a personagens como Catwoman (1940) e Black Cat (1979). São ambas personagens perigosas e sensuais que usam como símbolo o gato, novamente o felino (há mais). Em relação à primeira a preocupação de Bob Kane e Bill finger era a de trazer uma personagem sensual para o universo Batman, alguém que fosse tanto um oponente como um interesse amoroso, ou seja, alguém que contivesse uma carga tanto erótica como ameaçadora, e daí surge-nos Selina Kyle. “Black Cat” surge mais tarde na Marvel e é claramente inspirada na primeira, da DC, sendo apenas um interesse amoroso do Spider-Man ao invés do Batman.
Spider-Man e Black Cat |
Só por estes exemplos dá para ver que a ligação da mulher aos felinos tem ocorrido mais do que uma vez na ficção. O que me remete para o episódio “Lulu Grandiron” de “Nip/Tuck”, onde uma mulher pretende receber cirurgia plástica para incorporar elementos felinos na sua face. Ela crê na existência daquilo que podemos apelidar de uma beleza felina. Mais tarde provou-se que a senhora se tratava de uma doente mental, ainda assim não posso deixar de pensar que existe de facto uma beleza felina, pois lembro-me sempre disso quando vejo “Batman Returns” de Tim Burton. Ou estou a ser influenciado pela personagem do filme, ou não é Michell Pfeifer a escolha ideal para Catwoman, por possuir naturalmente esse tipo de beleza e sensualidade?
Michelle
Pfeiffer como Catwoman em “Batman Returns”
|
Para não me alongar muito mais, vamos dar um salto gigante no tempo e visitar o antigo Egipto, que me parece ser o local onde nasce a ligação da sexualidade feminina aos felinos. No panteão de deuses egípcios existe uma deusa de corpo de mulher e cabeça de gato, cujo nome é Bastet.
Bastet
|
Inicialmente Bastet era retratada com cabeça de leoa e venerada como uma deusa protectora. Contudo, quando ocorreu a unificação entre o alto e o baixo Egipto, alguns dos deuses foram fundidos devido às semelhanças entre si, algo que poderia ter ocorrido com Bastet por causa de uma outra deusa guerreira e de cabeça de leoa chamada Sekhmet. Ambas as deusas mantiveram o seu culto graças à importância que detinham no seu povo, porém Bastet ficou remetida a um papel menor e que sofreria alterações ao longo do tempo, ficando eventualmente associada como sendo a mãe do baixo Egipto.
Os gatos no antigo Egipto eram animais tidos em grande consideração, por serem muito eficazes a caçar ratos e cobras. Prova disso é que gatos pertencentes à realeza eram vestidos em jóias e alguns até mumificados após a morte. No primeiro milénio A.C., numa altura em que os gatos se tornaram muito populares como animais de estimação, Bastet começou a ser representada como uma mulher de cabeça de gato. Como podemos ver o culto do gato não surge, inicialmente, por questões sensuais ou eróticas. De qualquer das formas com o passar do tempo Bastet foi ficando cada vez mais associada a um papel de fertilidade e de prazer. Era também a deusa dos perfumes, a dada altura.
Anúbis e Bastet no filme “Immortel”, a adaptaçao da BD “Trilogia Nikopol”. Ambos de Enki Bilal. |
O facto de ter sido associada a mais do que um marido e a uma série de parceiros sexuais, incluindo deusas também, são factores que poderão ter contribuido fortemente para a sua reputação de deusa do prazer. Os seus rituais eram conhecidos pela sua sensualidade e erotismo. Alguns referem que as primeiras strippers surgiram nos rituais de Bast, e que estes rituais foram percursores de festas como o Carnaval.
Bastet representada em The Sandman de Neil Gaiman |
Como é normal, quando falamos de uma cultura antiga, nem todos partilham da mesma opinião em alguns aspectos desta deusa. Porém, uma coisa é certa, e essa é a influência que Bastet teve na cultura popular como símbolo de sensualidade e fertilidade, criando ligações entre a beleza feminina e felina. Retratos posteriores da deusa provam-no bem, como podemos ver na“Trilogia Nikopol” de Enki Bilal ou mais fortemente ainda, em “The Sandman” de Neil Gaiman onde é referido que Bast teve relações com o próprio Sandman, entre outros.
Irena e a estátua de Anúbis em “Cat People” (1942) |
Por tudo isto creio que há uma ligação entre a sensualidade feminina e os felinos que nasce na deusa Bastet. É de certa forma a mãe dos “Cat People”, algo que poderá terá ter sido sugestionado no filme de 1942 quando, durante uma exposição, Irena pára ao lado de uma estátua de Anúbis - um dos maridos de Bastet.
Olá, boa tarde.
ResponderEliminarGostei da reportagem, vc conseguiu colocar varias fontes sobre o assunto de uma maneira bem interessante. Eu tambem sou fascinado por gatos e felinos em geral, e estas ligações com as mulheres. Muitas vezes representei isso nas minhas pinturas.
Gostaria de comentar:
No filme Cat People, (o colorido, com Natasha Kinski), pude verificar um acontecimento triste. Eu possuia o DVD original e assisti os extras do filme, com narração do diretor. Lá ele explica como um jaguar africano acaba morrendo durante as filmagens, no caso, eu culpo sim os produtores. O animal foi colocado numa sala onde foi atiçado com um som agudo, enlouquecendo e batendo a cabeça na janela, inclusive nao tiveram respeito pelo animal e a cena foi usada no filme. É uma cena onde ele bate na janela e fica meio parado, qualquer um pode verificar, nao estou inventando. Ele morre logo após a cena, isto é mostrado apenas nos extras do filme. (dvd com comentários do diretor). O diretor diz que o animal ja era louco, mas eu acho q isso foi uma desculpa. Enfim, fiquei com raiva do filme e nunca mais assisti, joguei o DVD no lixo.
Sobre o resto da matéria, parabéns! quanto mais pessoas amantes de gatos no mundo, melhor! :D obrigado.
meu site: thiagobakargy.blogspot.com
Estava pesquisando sobre Bastet e Anúbis (um casal fantástico) e vim parar aqui. Ótima postagem. Parabéns!
ResponderEliminarAdoro felinos e gatos, inclusive os coitadinhos dos gatos pretos que são tão perseguidos (infelizmente).
Se as pessoas soubessem que gato preto dá sorte... não ficaria um só abandonado na rua. :-)
Muita sorte e bom trabalho!