Filme: Tequila Sunrise. Mulher: Jo Ann Vallenari
(IMDb)
“Intriga ao Amanhecer” (mais um título português infeliz) é um filme neo-noir de 1988, altura em que a revisitação e actualização de temas e géneros clássicos estava no auge, tendência que, curiosamente, tinha sido iniciada década e meia antes pelo mesmo Robert Towne e Roman Polanski em “Chinatown”, no mesmo género. Entre as novas abordagens aos clássicos de aventura ou horror, o género do film noir foi aquele em que a taxa de sucesso foi inversamente proporcional à proliferação de filmes. “Tequila Sunrise” é um dos raros casos bem-sucedidos nas intenções e na criação de um filme que, mantendo-se fiel aos elementos básicos e essenciais do género, conseguiu ter uma identidade própria e ostentar uma frescura no tema, ao mesmo tempo que espevitava uma curiosidade sobre os clássicos que lhe estavam na estirpe.
Dale 'Mac' McKussic e Nick Frescia são amigos de infância que seguiram rumos diferentes: o primeiro enveredou pela vida do crime, tornando-se traficante de droga, o segundo é o polícia aparentemente duro, mas com o coração mole. Ninguém acredita que Mac se regenerou, nem ninguém quer que ele se regenere, mas as intenções dele são legítimas, e a sua paixão por Jo Ann Vallenari, a dona do restaurante que ele frequenta diariamente, também.
A polícia, o DEA, o cartel mexicano, os pequenos traficantes, os clientes, o advogado, o juiz são todos peças num tabuleiro de xadrez que alinha o policial negro e enigmático com o triângulo amoroso clássico, numa estória que enaltece (e, a espaços, contesta) o amor e principalmente a amizade.
O tom é marcadamente negro, com um ritmo lento e uma narrativa esquiva que exige a atenção e a inteligência do espectador no desembrulhar de uma trama que se mantém enigmática até ao final, mas que recompensa o espectador atando todas as pontas soltas, sem margem para dúvidas (embora requeira mais do que uma visualização).
Mas é nos personagens que os padrões clássicos mais se acentuam: o polícia, o criminoso, a femme fatale e todos os que os rodeiam, são estereótipos à espera de serem desconstruídos mas que se mantêm fieis às raízes do género. No final, é a estória que permanece, e aquelas personagens tridimensionais que temos a sensação de conhecer desde sempre. Para isso contribuem as excelentes interpretações de Mel Gibson, Michelle Pfeiffer, Kurt Russell e os já desaparecidos Raul Julia e J.T. Walsh.
Claro que a forma também é importante para o reconhecimento do género e a realização de Towne é segura, não cedendo a popularismos e mantendo-se fiel ao seu objectivo de envolver o espectador, abusando algumas vezes da sua paciência na revelação da intriga, mas compensando a sua perseverança no final.
Claro que a forma também é importante para o reconhecimento do género e a realização de Towne é segura, não cedendo a popularismos e mantendo-se fiel ao seu objectivo de envolver o espectador, abusando algumas vezes da sua paciência na revelação da intriga, mas compensando a sua perseverança no final.
Destaque ainda para música de Dave Grusin, compositor e músico de jazz, que contrariava a tendência da época para a música enlatada de sintetizador e os ícones pop da moda. Eles também andam por aqui, nomes como Duran Duran ou Human League, mas dissimulados e quase imperceptíveis, dando-se primazia aos sons de Grusin, mais apropriados à temática do filme. A fotografia do veterano Conrad L. Hall é também importantíssima para a aproximação ao noir, embora abandone obviamente o preto e branco clássico, mas cuja iluminação e enquadramentos respeitam os manuais do género. Foi a única nomeação ao Óscar que o filme teve.
Quando estreou em Portugal, em Abril de 1989, um crítico do mítico jornal Se7e classificou-o como um futuro clássico. Eu também o considero como tal, mas chateia-me que as novas gerações não tenham acesso a ele. Fazendo uma busca na Amazon, notamos que não há uma única edição em blu-ray disponível, apenas uma em DVD (apesar de haver mais duas, em compilações de Mel Gibson e Kurt Russel) e 3 (sim, três) edições em VHS. Em Portugal, existe uma edição em DVD, mas não disponível para entrega imediata. É portanto um filme raro (para quem não está familiarizado com o streaming pago online) e que merecia mais sorte por parte das distribuidoras, que evitam assim que aceda ao estatuto de clássico que lhe fora profetizado e que, quinze anos depois, verdadeiramente merece.
Uma mulher: Jo Ann Vallenari (Michelle Pfeiffer)
No género do filme noir, a mulher era a peça mais importante da trama, objecto de desejo, e desconcertante por isso, e com personalidade forte, impondo-se aos homens e assumindo o controlo da narrativa, atraindo sobre si as atenções e motivações masculinas, quer das restantes personagens quer dos espectadores. Jo Ann Vallenari é uma dessas personagens icónicas que, apesar de uma entrada tímida em cena, assume rapidamente o centro das atenções. Mulher de personalidade forte, quer na forma como gere o seu negócio como as emoções dos restantes personagens, mas que se torna vulnerável às investidas externas sobre aqueles por quem se deixa envolver, acabando por transformar essa fragilidade em força na recta final, acabando por ser os seus actos que poem fim aos conflitos.
Numa altura em que as personagens femininas eram estereótipos de fragilidade (salvo obviamente algumas excepções), penteados exóticos e guarda-roupa indescritível, a sensualidade de Jo Ann saltava à vista como sendo mais um traço da sua personalidade. Há uma fuga à objectivação da personagem por parte da própria, quando todos os personagens masculinos insistem em torná-la no objecto de desejo tradicional, minimizando-a e desvalorizando a sua força e importância.
Michelle Pfeiffer é a actriz que lhe deu corpo, numa fase em que ainda não era vista como o sex-symbol em que se tornou, muito por culpa deste filme. Pfeiffer nem era das actrizes mais bonitas ou glamorosas na altura, mas a sua interpretação em “Tequila Sunrise”, fê-la alcançar esse estatuto e libertá-la da timidez dos papéis que tinha tido até então.
Mas, a razão mais importante e pessoal para a minha escolha, além da divulgação de um filme que a merece, é que esta personagem despertou no adolescente que eu era na altura a percepção da força e profundidade que pode existir numa mulher e na compreensão de que as ‘miúdas’ eram muito mais que um corpo roliço e uma carinha laroca. As imagens dela a conduzir um Alpha Romeo Spider, de cabelos louros ao vento, contrastavam com a forma como geria o restaurante ou se impunha perante os desejos e conspirações masculinas, acabando por lutar e defender aquilo em que ela própria acreditava ou queria, despertando em mim a curiosidade e a vontade de aprofundar o conhecimento em relação às mulheres, tendo principalmente passado a olhá-las com alguma admiração e respeito. Certamente que acontecerá com todos os adolescentes, mais tarde ou mais cedo, independentemente do filme ou das actrizes que lhes despertem esses sentimentos, mas para o rapaz apaixonado pela Elizabeth Shue de “Cocktail” a Jo Ann Vallenari de “Tequila Sunrise” fê-lo despertar para a idade adulta e iniciar a sua tentativa de compreensão das mulheres, algo que ele agora, 24 anos depois, sabe que dificilmente irá conseguir.
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