07/06/2013

Um filme, uma mulher. Por David Chaves



Filme: Alien. MulherRipley
(IMDb)

Não devia ter mais de 10 anos e enfiado na cama olhava para a janela de estores corridos que se debatiam contra os caixilhos mesmo à minha frente. Era uma noite de vendaval, mas não era o vento que me preocupava. Aquele monstro tinha-me ficado colado à mente e quase que o podia ver emergindo na escuridão. Não estou certo de ter chamado pelos meus pais a dada altura, mas gosto de pensar que não o fiz, que adormeci tranquilizado porque afinal de contas aquela mulher tinha acabado com ele no fim. O filme era Alien, ela era Ellen Ripley e foi um dos meus primeiros e mais intensos contactos com o terror.

Alien, filme obrigatório quando se fala no cinema de terror vive à custa de uma ambiência de horror pelo desconhecido, e sobretudo horror pelas consequências do conhecimento adquirido. A velha fábula Lovecraftiana da curiosidade matar o gato, uma das formas mais transversais de todo o género cinematográfico que incita ao medo. No filme a nave espacial mineira Nostromo que transporta uma tripulação de sete recebe um SOS vindo de um planeta das redondezas. O código da mensagem não é totalmente descritivo, mas mesmo assim a tripulação acorda do seu longo sono em criogenia e decide investigar. Ellen Ripley (Sigourney Weaver) está entre os sete, caminhando à cautela através desse mistério. Antes da cena filmada no planeta todo o filme está imerso numa névoa atmosférica claustrofóbica e o ritmo é propositadamente lento. Ridley Scott perde o seu tempo a filmar o cenário muito orgânico da nave, os corredores estreitos, os decks metalizados e sobretudo a própria nave movendo-se no espaço. Tudo isto transmite uma sensação de isolamento que a própria tripulação vive dentro da nave depois de acordar desorientada muito antes de chegar ao seu destino, a Terra.




Já no planeta, Dallas, Lambert e Kane rumam à origem do sinal e descobrem uma nave espacial alienígena  Os cenários magníficos até esta altura são a grande bandeira do filme. O'Bannon ficou a conhecer o trabalho do suíço H. R. Giger quando trabalhou em Dune e foi um dos seus desenhos que o inspirou a escrever a história de Alien. Já muita coisa foi dita sobre o trabalho de Giger para Alien, mas é mesmo verdade que sem nos esforçarmos muito conseguimos ver pénis e vaginas frame sim, frame não. O interior da nave espacial alienígena  repleta de negrume e humidade, lembra o interior de um corpo com as suas vísceras a pulsar de vida. Kane desce até uma espécie de cave onde se encontram muitos ovos cobertos por uma espécie de névoa azulada - cortesia dos The Who que emprestaram o seu sistema de lasers à produção para os testar para um concerto - e é aí que a primeira agressão acontece.



Surpreendentemente o filme joga também com a noção de um protagonista ausente, concentrando-se antes em mostrar a dinâmica de um grupo de pessoas. Ripley não é de todo a personagem principal ao longo da primeira hora do filme, e se tivesse de dizer em quem o filme se foca diria que seria a personagem de Tom Skerritt (Dallas), o capitão da nave. Mas a noção de um protagonista justo e determinado em Dallas esvai-se à medida que o tempo passa. Dallas ao regressar da superfície do planeta com um aranhiço colado ao rosto de Kane, tenta encobrir a situação para entrar na nave (enquanto Ripley nega a sua entrada), Dallas opta por conservar o bicho já desprovido de vida dentro da nave (ignorando as sugestões de Ripley) e acima de tudo, é Dallas que ao aventurar-se dentro dos canais de ventilação da nave (negando essa hipótese a Ripley que se tinha voluntariado) em perseguição do Alien, perde a coragem, tenta regressar à segurança e acaba por conhecer o seu fim. É nesta altura que a personalidade de Ripley se assume como dominante e ganha contornos mais vincados. E é esse, quanto a mim o maior trunfo do filme. Uma mulher que se vê traída por todos: pelos seus colegas (que morrem), pela Companhia (que a trai), pelo cientista de bordo (que afinal é um andróide com uma agenda escondida) e até pela própria inteligência artificial da nave (Mother! You bitch!). 

Rodeada em todos os aspectos por um ambiente que lhe é hostil, Ripley passa a modo de sobrevivência afirmando-se como um ícone feminino de coragem e determinação e escancarando a porta a pontapé para no futuro as mulheres puderem ter um papel preponderante como símbolos de força e assertividade em géneros tipicamente governados por homens. No seu semblante carrega uma dignidade ímpar, oscilando entre a vulnerabilidade e a coragem.




O último acto não constava no guião e foi acrescentado por Ridley Scott que pediu mais dinheiro aos estúdios e que funciona de novo como anzol lançado ao espectador: Ripley em cuequinhas a preparar-se para dormir, tudo está bem, mas o Alien ainda lá está, refugiado na nave e a preparar-se para atacar. O final já todos sabemos dentro do filme, o Alien morre e Ripley sobrevive, mas fora dele, o legado de uma mulher autónoma confrontada com uma história de horror e tomando as rédeas do seu destino permanece intacto e marca a transição do paradigma associado ao papel da mulher no cinema dentro de Hollywood.

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