31/12/2012

Les Misérables (2012)



[spoiler ]

Mais uma vez a palavra spoiler não fará muito sentido no início deste texto, sendo que o que está aqui em causa é só, uma das mais importantes obras da literatura mundial – um daqueles livros cuja leitura devia ser obrigatória por vários motivos, mas sobretudo por ser uma fonte histórica para aquele que foi um acontecimento que marcou para todo o sempre o percurso da História da Europa. 

Anda por ai muita gente incomodada com a constante referencia ao Les Misérables - escrevem e dizem que já não podem aturar a histeria em torno do mesmo. Lamento o incomodo, mas desde 2005 que ando a levar com o Batman do Nolan nas redes sociais, nas revistas de cinema, nos sites e blogs, até nos WC's do restaurante do "grande" Loretti na Mouraria. Como dizia a personagem dos Gato Fedorento "o ar é de todos". 

Entretanto só mais um aparte dedicado com estima, mas pouco apreço ao Sr. Mourinha, que escreveu estas inglórias palavras no seu facebook:
"Acabei de sair da projecção de imprensa dos "Miseráveis". Miserável não chega para descrever o tormento destes 157 minutos onde cinema há muito pouco e música então nem se fala. Vai ter muito êxito e ganhar muitos Óscars e traumatizar toda uma geração contra os filmes musicais."
Miserável é ler aquilo que escreve, não só pelo desrespeito à empresa que o convidou a ver de graça um filme - filme este que milhões de pessoas vão pagar para ver, como miserável é a sua insensibilidade sobre aquilo que inspirou o filme - o musical e não o livro. E miserável é essa sua argumentação de que este filme vai traumatizar alguém. 
Caro Jorge, eu Ana Sofia Santos, odeio musicais. Nunca esperei nada de extraordinário deste filme, mas fui vê-lo de mente aberta, e espante-se... ADOREI. 
Enfim.

Aqueles que são mais atentos ao que costumo escrever, já repararam que nutro uma especial simpatia por filmes históricos – sobretudo aqueles que envolvem Reis, Rainhas, Príncipes, Princesas e misturas afins. Muitos não sabem mas, o meu coração é monárquico, no entanto, respirem de alivio, porque a minha razão é regida pelos mesmos valores que a Revolução Francesa defendeu.
Na quinta-feira passada ao rever aquelas que foram as palavras de ordem - que antecederam a Revolução, as lágrimas manifestaram-se. Não só porque mais uma vez relembrei que poucas vezes na História as Revoluções são feita por maiorias, mas porque – fazendo um balanço com aquilo que é a França hoje – percebo que muitos morreram em vão. É que um pais que lutou por valores como a Liberdade, Igualdade e Fraternidade, está muito esquecido e a sofrer de grave amnésia.




O filme, sem mais demoras.
A eterna obra de Victor Hugo já foi adaptada ao cinema várias vezes, mas nenhuma assim. Tom Hooper inspirou-se no musical composto por Claude-Michel Schönberg com libretto de Alain Boublil e letras de Herbert Kretzmer. O filme ultrapassa a barreira do mero musical, para ser um filme hiper-musical. Três horas de música.
Estamos em França - início do século XIX - as barreiras cronológicas são a Batalha de Waterloo (1815) e os motins de junho de1832 - dois episódios que antecedem e anunciam a Revolução.  A miséria e a pobreza nas ruas de França são do nível mais baixo que o ser humano pode atingir. Sente-se o cheiro da morte, apalpa-se o sentimento de revolta e de sobrevivência. A doença empesta as ruas... a falta de trabalho alia-se à fome. O povo quer reagir, mas tem medo. A força deve surgir de um todo e não de meia dúzia.
É isto que Tom Hooper mostra. A miséria dos miseráveis. Alguns dos que  - tal como eu - já foram afortunados e viram o filme, criticam a utilização em demasia dos "close-ups" - percebo a critica, mas acho que o realizador recorre a essa técnica de forma propositada para vermos rostos sofridos. Talvez não tenha a mesma percepção que muitos tiveram, porque vi o filme num auditório e não numa sala de cinema. Mas não achei de todo o uso abusivo.

O filme é caracterizado pela existência de  personagens cujas vidas se interligam. Personagens cheias de sonhos desfeitos, amores impossíveis, sacrifício e sobrevivência. Todos procuram redenção, todos anseiam por uma revolução. No inicio - algo chocante - escravos brancos em plena Europa - algo que a História tão poucas vezes menciona, mas uma realidade bastante recorrente. O cenário é uma espécie de porto em que escravos puxam barcos para atracarem através de cordas e força de braços - aqui algumas imprecisões factuais, mas nada que mereça perder muito tempo. Conhecemos o escravo Jean Valjean (Hugh Jackman) e o policia Javert (Russell Crowe).
Depois de 19 anos preso - por roubar pão e por uma tentativa de fuga, Valjean é posto em "liberdade condicional". Javert é o portador dessa noticia, mas avisa-o que além de nunca se ir esquecer da sua cara, Valjean deve ser portador de uma carta denunciadora do seu estatuto de ladrão.



Les Misérables - 25th Anniversary


No seu caminho de "liberdade", Valjean entra numa igreja e é acolhido pelo Bispo de Digne. O Bispo oferece-lhe comida e dormida e o ex-recluso retribui com um roubo. Depressa é capturado, mas o Bispo mente e ajuda Valjean. Oferece-lhe dois castiçais e recomenda que enverede por uma nova vida. E ele assim faz, quebra a sua liberdade e a sua vida muda para sempre.
Passados 8 anos, Valjean torna-se Monsieur Madeleine, um nome respeitado e dono de uma fabrica. Nesta mesma fabrica trabalha Fantine (Anne Hathaway) - que depois de uma discussão com colegas, vê o seu segredo desvendado - Fantine tem uma filha que está entregue aos cuidados de um casal proprietário de uma estalagem.
As colegas pedem a sua demissão e o capataz de Madeleine cede, pondo Fantine na rua. Abandonada por todos, desesperada por dinheiro, vende o cabelo, os dentes e prostitui-se. Embutida na mais miserável das vidas miseráveis, Fantine agride um cliente e Javert - o agora inspector da cidade de Montreuil-sur-Mer, declara a sua prisão, mas Madeleine salva-a e compreendendo o seu estado debilitado de saúde, manda-a para o hospital.

Entretanto a memória de Javert é despertada, e o prisioneiro 24601 depressa surge no seu pensamento. Javert assiste a Monsieur Madeleine salvar um homem que ficou preso por debaixo de uma carroça. A força física que Valjean sempre demonstrou nos anos em que teve preso, voltou a ser exposta. Mas Javert pensa ter-se enganado e pede desculpa, é que um homem chamado Valjean foi preso e em breve seria julgado. Ao saber disto, Madeleine é incapaz de ver um inocente ser condenado por algo que não fez e apresenta-se em tribunal confessando ser ele o Valjean que procuravam.
Javert tinha razão e a sua procura pelo escravo que não cumpriu a sentença, ganha um novo alento. Valjean antes de ser preso visita Fantine no hospital. A mulher tem a vida presa por um invisível fio. Incomodado por se considerar o responsável pelo estado de Fantine, Valjean promete que vai à procura da filha da moribunda - Cosette e que vai tomar conta dela como se de uma filha se tratasse.
Ainda no hospital, Javert e Valjean envolvem-se numa luta. O fugitivo pede clemencia ao policia, explicando o que acabou de prometer a Fantine, mas o pedido é recusado e Valjean vê-se obrigado mais uma vez a fugir.
Valjean parte à procura de Cosette. Chega à hospedaria dos Thénardiers (Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter), em Montfermeil. Aqui Cosette é tratada não como uma criança, mas como uma empregada. o Casal trata a criança da forma oposta àquela que a filha Éponine tem. Valjean paga a liberdade de Cosette e com juntos partem para Paris.

Depois de novo corte cronológico, passam 9 anos. O líder popular - o general Lamarque é uma referência para o povo. É o único membro do governo que mostra preocupação com o povo e com as suas causas. Mas Lamarque está à beira da morte, e nas ruas são criados movimentos que pretendem perpetuar os ideais do General. Aos estudantes esclarecidos, juntam-se os mendigos, as prostitutas... o povo.  Á frente deste grupo de "revoltosos" estão os amigos Marius Pontmercy (Eddie Redmayne) e Enjolras (Aaron Tveit) - oriundos de famílias abastadas, mas apaixonados pelos ideais iluministas. Estão determinados a abandonar as suas vidas abundantes para lutarem ao lado daqueles que nada têm.
Também a Paris chegam, os Thénardier - que se aliam a uma trupe de criminosos e andam pelas ruas a fazerem aquilo que melhor sabem - roubar. E é nas ruas de Paris que o casal que "acolheu" Cosette (Amanda Seyfried) reconhece Valjean - o homem a quem vendeu a filha de Fantine. É neste mesmo momento que Marius e Cosette se apaixonam - um amor à primeira vista, seguido tristemente de perto pela filha dos Thenardier - Éponine (Samantha Barks), que é apaixonada pelo estudante.
O casal de ladrões tenta roubar Valjean e Cosette mas são salvos por Javert - sem este saber quem eles são. Mas mais tarde Javert reconhece-o e jura mais uma vez que o vai encontrar e aprisionar. Na fuga apresada, Marius perde Cosette de vista, mas pede ajuda à amiga Éponine para a encontrar.

As conspirações lideradas por Enjolras e Marius continuam - preparam uma revolta e a noticia trazida pelo jovem perspicaz Gavroche (Daniel Huttlestone) da morte do General faz com que os estudantes planeiem uma marcha sobre as ruas para conquistar o apoio do povo..
Cosette ficou encantada com  Marius. Valjean percebe que a filha está a crescer, mas continua a mante-la longe do seu passado e do passado da sua mãe. Éponine apesar de apaixonada por Marius leva-o ao encontro de Cosette e é em frente à casa de Valjean que a jovem evita que o grupo do pai roube a casa de Valjean, gritando alto e enxotando os ladrões, que temem em serem presos. Valjean, ouve os ruídos e, convencido de que é Javert que o procura ordena a Cosette que prepare as malas porque mais uma vez têm que fugir do passado. Cosette deixa uma carta de despedida a Marius e Éponine apanha a carta.
Paris está pronto para a rebelião. Valjean está prestes a entrar no exílio  Cosette e Marius seriam separados para sempre. O jovem revolucionário junta-se aos colegas e preparam-se para o conflito. Javert decide investigar aquilo que os jovens planeiam e para tal infiltra-se no grupo fingindo ser um simpatizante da causa As barricadas estão prontas. Marius pede a Gavroche para levar uma carta a Cosette, mas o pai intercepta a carta e percebe o amor que junta a filha ao jovem idealista. Valjean parte para as barricadas com a missão de proteger Marius para que este regresse seguro a casa e à filha.

A mentira de Javert é exposta pelo jovem perspicaz Gavroche e o policia é feito refém. O exercito começa o ataque. Eponine é baleada e morre nos braços de Marius. Depois de outro ataque, Valjean salva Enjolras e como recompensa pede para ser ele a matar Javert. Mas o ex-escravo não mata o seu perseguidor, liberta-o e dá-lhe o seu endereço.
O tempo vai passando, as barricadas vão cedendo e o povo com medo vai regressando às suas casas. A barricada de Enjolras e Marius torna-se a última a resistir. Num momento de coragem Gavroche - tenta recolher munições entre os despojos dos confrontos anteriores, mas é morto. O Exército dá um último aviso para se renderem, mas os rebeldes recusam, e em nome de França, lutam, com excepção de Valjean e Marius, todos são mortos.
Marius foi ferido, mas Valjean salva-o e foge com ele pelos imundos esgotos de Paris. Nos esgotos encontra Thénardier que até nos esgotos rapina, roubando inclusive o anel de Marius com o seu brasão de família. Como não podia deixar de ser, Javert espera por Valjean e mais uma vez o "derradeiro desenlace" não acontece. Javert não é capaz de prender ou ferir o prisioneiro cuja busca se tornou a causa maior da sua carreira e da sua vida. Javert torna-se incapaz de suportar o dom da misericórdia de Valjean para com ele e comete suicídio, atirando-se no rio Sena.

A morte dos jovens nas ruas é chorada pelas mulheres e por Marius, que foi salvo e que reencontrou o amor de Cosette. Valjean conta a sua história ao futuro "genro", e confessa que não pode mais ser um fugitivo pois não pode pôr a vida de Cosette em perigo. Valjean pede segredo sob aquilo que conta a Marius.
No dia do casamento de Marius e Cosette, aparecem os ladrões e vigaristas Thénardiers, que fingem ser o "Barão e Baronesa du Thénard". Marius reconhece-os e expulsa-os, mas antes de saírem o casal diz que Valjean é um assassino e que andou a carregar um corpo nos esgotos. Thénardier mostra a Marius o anel que roubou. O jovem percebe que "o morto era ele" e que foi Valjean que o salvou.
Valjean aguarda a morte e é atormentado pelo fantasma de Fantine. Antes de morrer recebe a visita de Cosette e de Marius que assim têm a possibilidade de se despedir e de agradecer. Valjean encaminhado por Fantine segue para o Paraíso, onde encontra todos aqueles que - ao contrário da realidade que vivenciou - lutaram com sucesso por uma França livre.



Apesar de não ser tão cruel como o livro, o filme de Hooper mostra fielmente a situação social chocante da França que despontou depois da derrota de Napoleão em Waterloo. O conflito das personagens é permanente e as facetas da alma humana são espelhados na narrativa. Através de Javert, Fantine, Valjean, etc, conhecemos a cobardia, a grandeza, o sofrimento, a ambição, a generosidade. O individualismo em deterioramento da causa conjunta.
Jean Valjean é o símbolo da resistência humana. Acompanhamos a descoberta dele próprio sobre qualidades que desconhecia ter. Foi salvo e salvou outros. Foi pobre e enriqueceu, sem nunca esquecer aquilo que foi e sem nunca deixar de ajudar quem precisava.
Se a estranheza de ver Crowell a cantar - sobretudo pelo tom falado e grave da sua voz, Hugh Jackman já nos habitou aos seus dotes musicais e de dança. Jackman deve obrigatoriamente ver o seu papel em Les Misérables ser reconhecido pela Academia em 2013.
Também Anne Hathaway é deslumbrante pela sua simplicidade e pela intensidade que entrega à sua personagem. Um papel que tem poucos minutos de estrelato, mas que está presente em todo o filme.
Um destaque à dupla dos Thénardiers - Helena Bonham Carter excêntrica e talentosa como só ela sabe ser e Sacha Baron Cohen que tal como no Hugo, volta a mostrar que há  talento e que talento além do Borat e afins.
No campo das interpretações permitam-me mencionar a candura de Amanda Seyfried, a doçura da personagem bem como o tom da voz de Samantha Barks  e o brio de Eddie Redmayne - duas boas surpresas.
Este filme, foi para mim, a surpresa mais agradável de 2012, ganhou um lugar cativo no meu top anual.

"Meus amigos, nunca digam que há plantas más ou homens maus.
O que há são maus cultivadores." 
Os Miseráveis - Victor Hugo

1 comentário:

  1. Acho que não te cheguei a dizer.. mas foi uma das críticas ao filme que mais gostei de ler - independentemente de ou louvar, ou não, li imensas.

    Obrigada Sofia, por esta e tantas outras :)

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