13/05/2013

Um filme, uma Mulher. Por Pedro Cinemaxunga





FilmeVivre sa vie: Film en douze tableaux. MulherAnna Karina
(IMDb)

Era uma tarde fria e nebulosa de Primavera do início do século. Um estabelecimento que já tinha vivida a glória de fervorosos tempos académicos e agora jazia inerte num decadente reflexo de outrora. O Sr. João trazia-me mais um café e perguntava educadamente “...e a menina não toma nada?”. Eu sorri a custo e respondi por ela, com uma graçola perfeitamente idiota que soltou do Sr. João o típico sorriso diplomático de barman que se está a borrifar. A menina fumava mecanicamente, com movimentos precisos e estranhamente hipnóticos. Fitava o infinito com erótica serenidade. Olhando-lhe para as mamas viçosas como alfaces numa manhã de orvalho disse-lhe com simulado desinteresse “Sabes, com esse equipamento todo as mulheres podiam facilmente controlar o mundo.”. Ela sorriu e olhou-me com ar de complacência, como quem dá uma medalha a uma criança que chegou ao final da corrida em 47º lugar. Voltou a olhar em frente e disse “As mulheres não são como os homens. Nós não queremos controlar o mundo. É um assunto muito aborrecido. Não vejo nenhum benefício nessa actividade. São tudo subprodutos da vossa incapacidade de amadurecer.” Eu não percebi bem, porque não percebia bem as mulheres. Ainda hoje não percebo e duvido que algum dia o consiga fazer. Retorqui, em tom humorístico para terminar o assunto, algo levemente relacionado com o velho ditote de que atrás de cada homem há sempre uma grande mulher. Aquilo que ouvi nos 15 minutos seguintes num ritmo perfeito, fúria controlada e parcialmente demagógica como só as mulheres conseguem, foi uma lição de vida. Percebi naquele momento, a frio e à bruta, o poder que as mulheres exercem, como o exercem e como a sua omnipresente influência aparentemente passiva pode mudar o rumo a qualquer acontecimento, da escolha de uma gravata à invasão de um país. E tudo isto com a leveza de quem pula de nenúfar em nenúfar. A rapariga não era minha namorada nem nada de remotamente íntimo do ponto de vista ginecológico, era uma amiga que aproveitava os nossos pequenos almoços para tirar temporariamente a pesada máscara da perfeição doméstica e da submissão conjugal. E com isto constatei algo que já algum tempo me vinha a triturar o cérebro, estarei fodido até ao final dos meus dias...

Mas nem sempre assim foi. O poder da mulher, agora mais massificado, foi durante largos milénios um privilégio das pérfidas matriarcas das aristocracia, mulheres manipuladoras e calculistas já sem valor reprodutivo. Onde os exércitos e as guerras de 100 anos falhavam, elas resolviam com um casamento estratégico, quando a diplomacia parecia esmorecer a caminho da escaramuça, elas resolviam com duas mamadas e uma espanholada. É assim a nossa fraqueza, gostamos muito dos nossos jogos másculos de man-child mas gostamos ainda mais de “esconder o chouriço”.

A história que vos trago hoje é a de Nana, interpretada pela belíssima Anna Karina em Vivre Sa Vie (1962) de Jean-Luc Godard. É a triste saga de uma mulher que cai num precipício de decadência, aquilo a que se convencionou chamar actualmente de “espiral recessiva”, e que em momento algum abandona a esperança no amor e na felicidade. Bem, e como estas coisas da Nouvelle Vague tendem a acabar muito mal para os protagonistas, não havendo neste caso regime de excepção.

Num bar fumarento e movimentado dos anos 60 uma casal conversa ao balcão, de costas para a câmara. Podemos espiar as suas feições nos espelhos atrás do balcão, o rumo dos acontecimentos parece não ser, de todo, agradável. Engolidos pela barulhenta azáfama da rotina matinal. Ela desesperada, farta da vida, diz que quer morrer. Ele limita-se a fazer controlo de estragos, “estás maluca”, “isso é conversa de papagaio”. Separam-se, fim do primeiro capítulo. Começa o desespero. 

O filme é-nos apresentado em 12 actos, tal como o próprio subtítulo indica, capítulos temáticos separados por um title card. Uma vórtice em direcção ao vazio. Nana é uma mulher que vê o chão a fugir-lhe debaixo dos pés, incapaz de controlar o fluxo dos acontecimentos. Capítulo após capítulo vão enegrecendo os eventos da sua vida, mas a miúda de estonteante beleza continua firme na sua busca pelo final feliz.

Aqui e ali há capítulos polvilhadas da culturapop dos anos 60 parisiense. Num capítulo Nana chora copiosamente enquanto assiste a uma projecção de "La passion de Jeanne d'Arc" de  Carl Theodor Dreyer, noutro assiste a um empolgante monólogo (ligeiramente onanista) do filósofo  Brice Parain acerca da importância da linguagem, noutro dança-se eroticamente, noutro ainda fala-se da profissão mais antiga do mundo do ponto de vista estritamente funcional e contabilístico. E por aí fora...

O que me impressiona aqui de modo a falar deste filme numa rubrica que à primeira vista pediria mais uma Linda Lovelace em Deep Throat ou Nandana Sen, a primeira mulher a mostrar as mamas num filme de Bollywood? Estas pequenas inovações que puxaram o género para a frente de combate da igualdade. O que me impressionou neste filme, em primeiro lugar, foi o realismo aplicado à decadência de uma beldade caída em desgraça, empurrada de uma relação estável, para uns castings falhados e depois cair na prostituição. Mais tarde luta pela sobrevivência usando os seus dotes físicos e as suas técnicas de sedução, acabando por ser engolida e trucidade pelo meio de desgaste rápido do putedo intensivo. Mais que a sua decadência, impressiona toda a insensibilidade para a condição humana em seu redor, contrastando com a sensibilidade artística. Resumindo, os francius avant-garde impressionam-se com a poesia arrastada de um bêbedo de meia idade e estão a borrifar-se para a dignidade da condição humana. 

Não chorei, não declamei odes nem sequer demonstrei sentimentos boiolas em relação a isto. O certo é que nunca mais me esqueci. Uma gaja tão bonita, tão erudita e cheia de multifuncionalidade ali jogada como um trapillho, bolas! Longe de mim querer ser sebastianista, porque há neste filme elementos fossilizados para os tempos contemporâneos, mas quando um conceito fica gravado no subconsciente ao ponto de criar sensações vividas mesmo quando não nos lembramos da narrativa de modo muito claro, este filme não pode ser mau.

ADENDA: Com a furiosa velocidade dos tempos, das produções semanais de Hollywood que semanalmente nos poluem as salas, as pessoas esquecem-se do passado. Para quem não percebe a dimensão de Jean-Luc Godard, a analogia que se pode aplicar aqui é que ele era uma espécie de Tarantino nos anos 60. Os filmes eram esperados, geravam hype, discutiam-se, amavam-se, odiavam-se, criavam escola e ideologia. 

CITAÇÃO OBRIGATÓRIA PARA ESTE TIPO DE POSTS: "The cinema is not an art which films life: the cinema is something between art and life. Unlike painting and literature, the cinema both gives to life and takes from it, and I try to render this concept in my films. Literature and painting both exist as art from the very start; the cinema doesn't." -  Jean-Luc Godard




4 comentários:

  1. Grande começo de iniciativa, em tudo. Desde o filme (enorme Godard), à actriz (de uma dimensão dentro e fora do ecrã gigantesca), passando ainda pelo habitual texto incisivo e produtivo do Cinemaxunga.

    Cumprimentos,
    Jorge Teixeira
    Caminho Largo

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  2. Porra, depois desta estreia do Pedro, até vou ter vergonha da miséria que escrevi, quando esta for publicada!

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  3. Excelente escolha, "Vivre Sa Vie" é um dos meus predilectos de Godard e percebe-se imediatamente como Karina se tornou a sua musa. Ela é linda, sensual e uma actriz fantástica.

    Godard dizia que para fazer um filme chegava uma mulher bonita e uma arma. E eu até acho que se a mulher for a Anna Karina até podemos dispensar a arma.

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  4. Tive precisamente o mesmo pensamento do Carlos Reis. Que raio, escrevi apenas umas míseras linhas...damn it!

    Grande catapulta para esta iniciativa. Devorei cada palavra deste texto. Um grande filme sem dúvida. E preciso urgentemente de o rever.

    Cumprimentos,
    Rafael Santos
    Memento mori

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